Nunca houve um espírito de equipe tão grande no Banco Central (BC), disse o presidente Roberto Campos Neto em entrevista exclusiva ao GLOBO, negando que haja conflitos nesse momento dentro do BC.
Sobre a possibilidade de aumento de juros, ele diz que o Comitê de Política Monetária (Copom) não quis antecipar o que acontecerá na próxima reunião (dar guidance), mas lembra que a situação internacional melhorou muito nas últimas semanas e alerta que o mercado está falando em alta de juros, mas os economistas não.
Campos Neto revela que o Banco Central esteve muito perto de intervir no câmbio. Na entrevista, ele enfrentou com bom humor, e relaxado, as perguntas sobre as tensões políticas do Banco Central e deu conselhos ao futuro presidente da instituição.
Desde de que o BC falou da possibilidade da alta de juros, o mercado passou a apostar em alta de juros. O BC acaba sendo um organizador dessas expectativas de alta de juros?
A gente sempre disse que se fosse necessário subir os juros, subiria, mas não lembro de ter falado de alta de juros. O mercado já vinha colocando um pouco de expectativa de alta na curva. Mas não depende só do mercado, precisa olhar o cenário daqui para frente. A economia está forte, parte do mercado de trabalho está forte, a inflação em 12 meses bateu 4,5%,mas vai cair um pouco, e os próximos números vão ser melhores.
A gente tem uma tese não comprovada, mas com indícios, de que o mercado de trabalho forte está começando a afetar serviços, mas ainda não está evidente. Por outro lado, sobre a economia americana há agora a percepção de que haverá desaceleração organizada. Os economistas não estão prevendo alta ( de juros) para este ano, mas o mercado sim. É importante ter calma, ter cautela nos momentos de muita volatilidade.
Aquele fantasma, que produziu um dia tão terrível de quedas de Bolsas no mundo inteiro, sumiu?
Esse fantasma tinha três razões. O medo de que a desaceleração nos EUA fosse ser muito mais forte. Esse fantasma desapareceu. Outra razão era que uma parte grande do mercado financeiro mundial estava “fundiado” em iene, ou seja, tinha a perspectiva de que, no Japão, a taxa de juros ia ficar baixa para sempre, de que era fácil pegar dinheiro emprestado lá para aplicar em outros lugares.
Esse movimento foi desmontado em mais ou menos 50% a 60%, já não tem mais o mesmo peso. O mercado começou a ter uma preocupação muito grande sobre a relação entre EUA e China com medo de uma desaceleração global.
O que fica mais provável: o cenário de alta de juros ou o cenário de manutenção dos juros por mais tempo?
O que posso dizer, e de novo, é que há opiniões divergentes no grupo sobre o balanço de riscos, se são simétricos ou não. A gente vai decidir no próximo Copom.
Mas em setembro, o Fed (BC dos EUA) estará reduzindo os juros e a gente subindo?
O mundo saiu de uma sincronia de política monetária para uma não sincronia. Precisa observar como é que isso vai se dar nos EUA. O mercado está muito volátil. Tem uma tese de que a inflação aqui está sendo realimentada por uma atividade forte, por um emprego forte. É verdade? Vamos olhar.
O que aconteceu com a taxa de juros longa nesse período? Ela até caiu, vem melhorando. O câmbio que estava muito volátil em volta da última reunião do Copom, parece que está melhor. Tenho a percepção de que isso está melhor do que estava na data em volta da última reunião do Copom.
Por que não foi feita uma intervenção no câmbio naquele momento, que estava bem alto?
A gente discutiu em alguns momentos se deveria vender câmbio ou não, olhou as variáveis. A curva longa de juros estava subindo muito e uma das coisas que a gente aprendeu aqui é que tem que fazer intervenção quando tem disfuncionalidade no mercado.
Mas não tinha?
A gente olhava a liquidez no câmbio e achava que não. Olhava a precificação do câmbio com outras variáveis do Brasil e achava que não. Mas quando olhava a desvalorização do câmbio tinha sido bastante rápido naquele período. Então gerou um debate, a gente preferiu esperar. Teve momentos que a gente estava preparado para intervir de fato.
Mas se mostrou uma decisão bastante boa não intervir: o câmbio voltou, a taxa de juros longa voltou. A desvalorização é uma percepção de piora no risco de um país. O problema quando você faz intervenção é que não consegue intervir em todos os mercados. E o que acontece, geralmente, é que o pessoal que está buscando o hedge (proteção), foge para a taxa de juros longa, que é muito mais disruptiva, porque o Tesouro não tem como recomprar, tem que se financiar.
“Não estou muito preocupado com o poder, estou preocupado com a continuidade”
Ao contrário, o Brasil tem até dívida crescente. O temor é gerar disfuncionalidade em outros mercados. Então, a interpretação foi que era uma coisa passageira. Se fizer intervenção, pode passar a percepção errada. E o mercado voltou ao patamar que estava três semanas antes. Mas nós chegamos perto de fazer a intervenção e discutimos isso durante alguns dias.
E, de novo, não é decisão só minha. Discutimos com o diretor de Política Monetária, com pessoas da mesa, a gente falou com outros diretores. Foi uma decisão colegiada.
Você queria uma transição tranquila, mas houve muita briga entre o governo e o BC. Continua com essa expectativa?
Preciso fazer uma correção, porque briga é quando tem dois atacando ou se defendendo, e a gente nunca atacou, então não teve briga. Teve algumas críticas ao BC. A transição está sendo super suave. As últimas duas reuniões do Copom, não lembro de ter tido espírito de equipe tão grande entre todos nós.
A gente diz, fizemos um negócio aqui, deu ruído grande, entendemos o ruído. Não foi pela divisão em si, foi pela percepção de que a divisão poderia ter sido política. Vamos consertar.
Não lembro, durante muito tempo aqui, de o grupo estar tão coeso como está hoje. Então acho que isso é sinal que a transição está sendo suave. Eu me comprometi a fazer isso. Eu mesmo sugeri que fosse antecipada a nomeação para poder fazer a transição suave. Eu me comprometi a ficar até o último dia, a ajudar durante a sabatina ou durante o período que for. Isso está acontecendo.
Quando falava em antecipar, que mês tinha em mente?
Não tinha um mês muito certo na cabeça. Sabia que a eleição municipal ia gerar, vamos dizer assim, um período onde seria difícil mobilizar forças em Brasília. Tinha na cabeça que a CAE (Comissão de Assuntos Econômicos) funciona até o meio ou o fim de novembro. E o processo de sabatina leva tempo. Tem o rito do Senado.
“Não lembro, durante muito tempo aqui, de o grupo estar tão coeso como está hoje. Então acho que isso é sinal de que a transição está sendo suave”
Há um treinamento no BC que todo mundo faz, eu fiz, o Ilan fez, que é sobre o que pode ser a sabatina, quais são as perguntas, os temas. É óbvio que quem já está no BC está mais inteirado. Setembro seria bom, mas um mês a mais, um mês a menos, não faz muita diferença.
A partir da indicação de alguém, você perderá poder, ficará na sombra e o outro sob luz. Isso incomoda?
Não, sempre achei que tem dois tipos de poderes: o poder por autoridade e o por conhecimento. Sempre tentei exercer no Banco Central o poder por conhecimento. E o poder por conhecimento continua, inclusive quando sair do Banco Central.
Não tenho incômodo com isso, quero ajudar na transição e tenho certeza de que quem entrar vai conversar comigo e falar: ‘o que você acha disso?’ No fim das contas, não estou muito preocupado com o poder, estou preocupado com a continuidade.
Como avalia a transição do governo Bolsonaro?
Eu teria feito uma transição mais suave, sempre acreditei na transição suave. Em alguns ministérios foi assim, em outros não. Não cabe a mim criticar, cabe dizer o que acho que tenho que fazer para melhorar a institucionalidade do BC. E no meu caso, tenho que fazer uma transição suave, me comprometi com isso e estou fazendo isso.
O presidente Lula várias vezes o criticou, falando que você era uma espécie de inimigo do país. Como sente esse tipo de crítica?
É um discurso mais político do que técnico. Sou técnico, então não entro no campo político. O que vai ficar quando eu sair do BC são as entregas que fiz. Estou mais preocupado em conseguir entregar as novas fases do Open Finance, no que vamos fazer diferente no Pix, se vou entregar a inflação na meta, do que com qualquer tipo de crítica política.
Houve dois episódios controversos com você. A primeira é a camisa da seleção no dia da votação. Você se arrependeu daquela camisa?
Hoje eu teria feito diferente. O voto é um ato privado. Não, eu acho que o meu voto seria uma surpresa. Teria feito diferente, mas acho que, no fim das contas, a autonomia e a independência se fazem pelo que eu fiz ao longo do tempo no Banco Central. Fizemos a maior alta de juros em período eleitoral dos países emergentes.
E o outro episódio, da homenagem do governador Tarcísio. Inclusive você teria dito que voltaria para o setor público num governo Tarcísio.
Esse episódio não é verdade. Eu tive uma homenagem no Mato Grosso, do governador Mauro Mendes. Não teve nenhuma repercussão na mídia. Meu avô é de Mato Grosso. Em seguida veio o convite para fazer em São Paulo porque é o lugar onde eu moro. Teve um convite para fazer um evento na cidade do Rio de Janeiro, porque eu sou do Rio. Depois para um evento em Minas. Eu entendi que era um reconhecimento do trabalho do Banco Central. Não vejo nenhum problema nisso.
Aquilo foi, de novo, uma narrativa política que foi colocada no evento. Ia ter essa narrativa se fosse no Rio? Não, porque provavelmente não era um candidato bolsonarista. Nunca falei com o Tarcísio que queria ser ministro de nada. Todas as vezes que discuti com o Tarcísio, o que ele dizia para mim é, eu “sou candidato em 2030”.
A gente discute, sou amigo pessoal dele. Foi uma coisa que foi totalmente tirada do contexto e foi colocada uma roupagem política que não houve. Por que eu posso fazer em Mato Grosso e não em São Paulo, só porque o Tarcísio é candidato a presidente?
Você é amigo do governador Tarcísio. Como é que faz para blindar o Banco Central desse contato mais frequente com uma pessoa da oposição?
Hoje há uma cultura tão polarizada que as pessoas acham que você só tem amigo que pensa igual a você. Isso não é verdade para mim. Tenho amigos que pensam muito diferente de mim, e que chego e discuto do mesmo jeito que discuto com os amigos que pensam igual. É importante diferenciar a proximidade da autonomia.
“É importante ter calma, ter cautela nos momentos de muita volatilidade”
Quem vai me suceder aqui tenho certeza que vai ter proximidade com o governo atual, que vai participar de eventos do governo atual. E espero que ele não seja julgado por isso. Aliás, eu espero que a pessoa que venha me suceder aqui não seja julgada nem pela cor da camisa com a qual ele votou, nem pelas reuniões que ele fez, nem pelos jantares que ele fez, e sim pelas decisões técnicas que tomou.
Porque eu tenho certeza de que ele vai passar pela mesma coisa que eu passei. Porque no mundo polarizado isso tende a acontecer.
E eu não sei quem vai ser, há uma especulação em relação ao Gabriel (Galípolo). Mas independentemente de quem seja, espero que seja julgado pelas coisas técnicas. É impossível você estar no Banco Central e não ter proximidade com o governo ou com alguns agentes políticos. Porque precisa do governo e dos agentes políticos para fazer seus projetos.
Agora, ter proximidade não significa que você vai perder a sua autonomia, não significa que você vai tomar decisões que não são técnicas.
Como é a sua relação com Gabriel Galípolo ou com Paulo Picchetti, que também foi indicado pelo presidente Lula, e viaja muito com você, porque é diretor da área Internacional. Como é no dia a dia?
É excelente. O Paulo é uma pessoa espetacular. Tenho certeza de que quando eu sair daqui a gente vai ser muito amigo. Muito técnico, a gente discute bastante. O Gabriel é uma pessoa que eu sou bastante próximo, inclusive acabamos de conversar, a gente troca muita mensagem.
Não tem nenhum problema, acho que tem uma narrativa de que existem problemas, que na verdade não existem. Pode ter diferença em algum ponto, em algum momento aqui.
Como você vê a conjuntura do país? As previsões do PIB estão se aproximando de 3%. O ano passado teve um descolamento entre a previsão e o que realmente aconteceu.
Primeiro, reconhecer os erros. Acho que os economistas, eu me incluindo, temos errado consistentemente em crescimento há bastante tempo. Diria há alguns anos. Uma tese inicial é de que um pedaço estrutural do crescimento está melhor do que a gente imaginava. Em termos de dados econômicos, a gente está bastante distante do que os preços dizem.
Os preços hoje no Brasil parecem passar uma preocupação muito mais com o futuro do que com os dados correntes. Se a gente olhar os dados correntes, a gente está com um crescimento bom e dados de desemprego bons, comparados à América Latina. A gente está com uma inflação um pouquinho acima do centro da meta, mas a gente quer trazê-la para a meta.
A parte externa está super bem do Brasil. Acho que os dados estão muito melhores no Brasil do que os preços refletem. A parte fiscal, com toda dificuldade do governo, está tendo um esforço, bloqueio ali. O arcabouço poderia ser melhor. Mas você vê que o governo está se esforçando. Acho que os números estão melhores do que o que o fundamento diz.
Como avalia o trabalho do ministro Fernando Haddad ?
Ser ministro da Fazenda é muito difícil. Tem um livro que diz que é o pior emprego do mundo, que eu acho que está bem certo. É muito difícil o trabalho de fiscal no Brasil. Você tem um executivo que às vezes quer fazer uma coisa que não é exatamente o que o ministro quer. Tem um Congresso que tem as suas direções e tem todo um tema do Orçamento ter transladado bastante para o Congresso.
“Não quero estar no mundo público, eu quero estar no mundo privado. Provavelmente eu vou fazer alguma coisa que mistura tecnologia e finanças, que é o que tem me interessado”
E tem o Judiciário. Você toma uma decisão, o Judiciário entende que é de uma outra forma, às vezes pode ter impacto financeiro. No mundo também. Se a gente pegar a eleição nos Estados Unidos hoje, é quase que um campeonato de quem faz mais inflação, porque as políticas dos dois lados são antimigração, são fiscal frouxo e são todas de protecionismo, que é um protecionismo inflacionário, por definição.
O ministro Fernando Haddad costuma dizer que recebeu muitos problemas fiscais. Como você avalia isso?
A minha análise técnica é que a realidade está no meio. Não é nem verdade que não foi passado nada e nem é verdade que foi passado um número tão grande. O Bolsa Família era promessa de campanha dos dois. Um pedaço do precatório de fato ficou uma dívida para frente, mas não é o volume total porque um pedaço foi pago naquele ano. E tem um processo de desoneração, eu não teria feito daquela forma.
Precatório você faria isso? Deixar de pagar uma dívida?
Não, eu não faria.
Você acha que houve uma tentativa de golpe no Brasil?
Não tenho conhecimento nem informação suficiente para falar sobre isso. Mas eu acho que a democracia é a coisa mais importante que a gente tem. Acho que a gente precisa crescer no amadurecimento da democracia.
Os eventos climáticos extremos, o desmatamento, afetam preços. Está dentro do mandato do Banco Central?
Essa é uma grande pergunta, porque é onde a gente tem uma discordância muito grande no âmbito internacional, que é qual é a extensão do seu mandato. Não influencia só alimento, influencia energia, influencia logística, Influencia tudo o que influencia preços. Pode influenciar através da estabilidade do sistema financeiro. A gente viu que a gente teve que ajudar as instituições financeiras no Rio Grande do Sul recentemente.
“Eu dou o conselho (ao próximo presidente do Banco Central) que ele saiba dizer não, que seja resistente e duro nos momentos de crítica, que sempre vão ter”
Se o nosso mandato é preço e estabilidade financeira, influencia tudo o que está no nosso mandato. A questão é, dado que influencia o nosso mandato, qual deveria ser o limite das nossas ações? Tem uma visão europeia de que a gente deveria fazer com que as instituições financeiras direcionassem financiamentos para atividades mais sustentáveis e deveria haver um custo quando isso não é feito.
E tem a visão americana que diz: “não, o nosso mandato se limita à política monetária e a gente tem que mostrar os dados de quem está fazendo financiamento sustentável, mas nós não deveríamos atuar sobre isso”. Diria que o Banco Central hoje, do Brasil, pelo menos com o grupo que nós temos hoje, está mais inclinado à visão da Europa do que a dos EUA.
Você já perdeu a esperança de fazer a autonomia financeira do Banco Central?
A gente tem a autonomia operacional, acho que ela funcionou bem. Acho que teve muito menos volatilidade na transição de governo que poderia ter tido, isso foi bom. O Banco Central conseguiu fazer uma agenda de inovação muito boa, com poucos recursos, em alguns momentos com conversas até mais duras com o sistema financeiro e é importante seguir com isso. No mundo, as autonomias dos Bancos Centrais avançam e não apenas operacional, mas financeira em primeiro lugar.
Você vai completar seis anos de Banco Central. Como é que pesa o fato de Roberto Campos ser o seu avô e ser um dos fundadores do Banco Central? Você teve diálogos hipotéticos com ele? Sentado nessa cadeira?
Tive alguns (risos). Mas assim, pesou um pouco.
Você acha que ele aprovou seu trabalho?
Eu espero que sim. Acho que um dia a gente vai se encontrar ainda e ele vai me dizer. Pelo menos, aprovado o meu esforço. Olhei muito as anotações, tudo que ele tinha feito sobre o Banco Central. Confesso que eu nunca planejei bem estar no mundo público e muito menos estar no Banco Central. Mas tem sido o período mais feliz da minha vida, ainda tem cinco meses.
E o que você vai fazer após?
Eu não quero estar no mundo público, eu quero estar no mundo privado. Provavelmente eu vou fazer alguma coisa que mistura tecnologia e finanças, que é o que tem me interessado.
Que conselho você dá para o próximo presidente?
Eu dou o conselho que ele saiba dizer não, que seja resistente e duro nos momentos de crítica que sempre vão ter. É normal ter crítica ao Banco Central, é normal ter crítica a juros, ainda mais o Brasil que tem um histórico de juros altos. O meu conselho é que ele seja firme, seja técnico, seja íntegro e saiba dizer não.